(Re) Descobrindo faces da violência sexual contra crianças e adolescentes

Capítulo II: Notificação compulsória dos casos de violência no sistema único de saúde: contribuições de Goiânia

Maria Aparecida Alves da Silva

Nos meses de novembro e dezembro de 2006, ocorreu o evento de capacitação denominado Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia (1), cujo objetivo era sensibilizar os profissionais da Rede de Atenção de Goiânia sobre a importância da notificação compulsória dos casos de violência (2). Para cumprir essa finalidade, fez-se um resgate histórico sobre a implantação da notificação de violência na cidade de Goiânia e expuseram-se as contribuições da experiência de Goiânia na construção da notificação nacional. Pesquisadores do “Projeto: Ações de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil em Goiânia e Região Metropolitana” (convênio nº. 159/2005 firmado entre a Universidade Católica de Goiás e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República), que acompanharam como observadores as reuniões dessa capacitação, sugeriram, ao final, que o relato oral das contribuições de Goiânia fosse transformado em textos, para posterior publicação.

Transformar o relato oral de alguns participantes do processo de construção da notificação de casos de violência da cidade de Goiânia em uma memória escrita é a proposta desse artigo. Assim como de costume dos goianos a história da notificação será contada meio que na forma de um “causo”, onde se mistura personagens e eventos a partir de relatos orais de alguns protagonistas envolvidos. Inicia-se esclarecendo como foi organizada da referida capacitação. A referência central de toda a narrativa é a da Rede de Atenção de Goiânia. Conta-se um pouco da história dessa rede a partir de lembranças ainda vivas dos principais envolvidos e do suporte de documentos oficiais de diversas instituições governamentais. E é com a Rede de Atenção de Goiânia que principia a criação da notificação goiana.

Os documentos oficiais do Ministério da Saúde (MS), da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia (SMS) e da Executiva da Rede de Atenção de Goiânia foram importante fonte de pesquisa. Também conta-se com depoimentos orais de técnicos e gestores envolvidos nesse processo, com relatos de Norma A. Cardoso, representante do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil (IDF/UCG), de Lucimarta Santana da Cunha (NPVPS) e de Rafael Dídimo Santos (da Central de Informática), ambos da SMS de Goiânia. Conta, ainda, com depoimentos de Marta Maria Alves da Silva, da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde, e de Otaliba Libânio de Morais Neto, do Departamento de Análises de Situação de Saúde da Secretaria de Vigilância em Saúde do MS.

Ainda que a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências seja compreendida como uma conquista de muitos, mesmo assim relata-se o esforço goiano presente na construção da notificação nacional, cujo fio condutor será a Rede de Atenção de Goiânia e a posterior implantação da ficha de notificação dos casos de violência desenvolvida em Goiânia, no ano de 2004. A ênfase dada no texto à área da saúde deve-se ao fato de ser o campo de maior conhecimento e atuação da autora. No entanto, é importante deixar claro que essa área não foi o único, tampouco o principal segmento social de Goiânia a contribuir com a notificação goiana.


A notificação dos casos de violência traz em si as forças sociais que a constituíram. É um produto coletivo. Ela representa um pensamento, uma forma de agir no mundo. Está sob a égide de que todas as pessoas são iguais e de que ninguém tem o direito de tratar o outro como objeto. E que a violência não é uma expressão “natural” do ser humano. Por isso a violência deve ser identificada, prevenida e punida. Ao narrar a história da criação da Rede de Atenção de Goiânia e sua contribuição na construção da ficha nacional, o que se pretende é demonstrar como a história coletiva de um lugar, e de suas relações, pode ser formadora e transformadora. E, por conseguinte, influenciar e afetar a atuação profissional de técnicos e gestores que posteriormente participaram da construção da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências.


Capacitação sobre importância da notificação dos casos de violência.

O Núcleo de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde (NPVPS) da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia (SMS) tem como rotina acompanhar todas as notificações compulsórias dos casos de violência que são emitidas pelas Unidades de Saúde (municipais, estaduais e federais) de Goiânia. Apesar de a implantação da notificação nacional ter-se iniciado no mês de agosto de 2006 em Goiânia, esse acompanhamento revelou que existe ainda uma elevada subnotificação dos casos de violência. As notificações que chegavam ao NPVPS, na maioria das vezes, provinham dos mesmos serviços de saúde. Os serviços que mais notificam apresentam duas características em comum: 1) refere-se a profissionais ou equipes técnicas com um histórico de participação em várias formações da Rede de Atenção de Goiânia e 2) possuem uma baixa rotatividade em seu quadro funcional.

Essas características indicam uma correlação entre o número e a freqüência de notificações enviadas ao NPVPS e o número de profissionais capacitados pela Rede de Atenção de Goiânia lotados nos serviços. Diante dessa correlação, o NPVPS compreendeu que era fundamental retomar as capacitações continuadas da Rede, organizando, portanto, um evento específico sobre a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. (3) O seu público-alvo foram os profissionais dos serviços que compõem a Rede de Atenção de Goiânia que ainda não haviam passado por nenhum processo de capacitação, ou seja, de educação permanente.

Os membros da Executiva da referida Rede que foram responsáveis pelo planejamento e execução dessa capacitação avaliaram que não cabia, naquele momento, dar explicações didáticas sobre a forma de preenchimento da ficha, tampouco descrever as implicações legais e administrativas decorrentes da não-realização da notificação. A formação deveria resgatar a história da criação da Rede de Atenção de Goiânia e da notificação de casos de violência implantada em Goiânia no ano de 2004, mostrar como a experiência de Goiânia colaborou na efetivação da ficha nacional e por fim discutir os dilemas que se apresentam no momento de notificar os casos de violência. Como aquecimento da discussão dos dilemas, utilizou-se o filme Escolha de Sofia.

O prioritário, para os organizadores da capacitação, naquele momento era dar sentido e historicidade à notificação. O importante era que os participantes refletissem sobre o poder de suas escolhas, enfim que eles percebessem as possíveis conseqüências, tanto no plano coletivo como individual, de suas opções. Com essa metodologia, pretendia-se evitar que os profissionais continuassem enxergando a notificação como mais um papel sem sentido a ser preenchido na rotina de seu trabalho. Na visão dos organizadores, era fundamental ressaltar a energia, a vida pulsante, que estava presente na notificação, pois a criação da notificação nacional dos casos de violência era o resultado de uma longa história de luta de homens e mulheres espalhados por todo o Brasil.

Construção coletiva das ações e dos instrumentos da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia: pacto permanente entre os atores

A Rede de Atenção de Goiânia tem suas raízes fincadas no solo fértil dos movimentos sociais organizados da capital goiana (4). Porém a Rede só se efetivou quando, na esfera do poder público municipal, havia gestores e técnicos comprometidos com as causas da cidadania, ou seja, quando estes integraram gestões de caráter democrático-popular e transformaram o seu compromisso em políticas públicas e ações concretas para a garantia de benefícios à população que deveria ser atendida pela Rede de Atenção de Goiânia.

Os dois pilares que sedimentaram a fundação da Rede de Atenção de Goiânia foram a força dos segmentos sociais organizados de Goiânia e a decisão política de técnicos e gestores comprometidos com a defesa dos direitos da criança, do adolescente e da mulher. No entanto é importante ressaltar que muitos desses gestores e técnicos integram ou emergiram dos mesmos movimentos sociais que lutaram para a construção da Rede de Atenção de Goiânia. Esse fato permite uma possível interpretação: a de que a efetivação da Rede de Atenção de Goiânia deu-se mais pela influência dos movimentos de defesa das mulheres, das crianças e dos adolescentes, do que por força das diretrizes políticas definidas nas gestões municipais.

Ao ser concebida, a Rede de Atenção de Goiânia trazia impressa em sua gênese, de forma indelével, a semente da participação democrática e o engajamento de vários atores sociais. Com a marca dessa origem democrática, o conceito de rede adotado pelo Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e pelo Fórum Goiano de Mulheres se define como uma articulação política, entre atores iguais e/ou instituições, não-hierárquica (5). Essa articulação se fundamenta no reconhecimento da importância dos demais parceiros institucionais, na colaboração, na cooperação e no compartilhamento de saberes, ações, objetivos, projetos e poderes.

Para a então coordenadora do Fórum Goiano de Mulheres, Rurany Silva:


"A articulação do Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infanto-Juvenil como Fórum Goiano de Mulheres foi muito importante para a efetivação da Rede de Atenção de Goiânia. Antes, esses atores trabalhavam em espaços sociais distintos com a temática da violência. A partir da articulação, passaram a discutir e a buscar formas de viabilizar a construção da Rede, somando-se assim a força e o poder de pressão de cada Fórum".


No entendimento desses dois Fóruns, a Rede de Atenção de Goiânia deveria ser constituída por laços institucionais ou por relações interpessoais. Ela teria como papel fundamental a elaboração de propostas de políticas públicas que promovessem o enfrentamento do fenômeno da violência. Outro papel estratégico era a articulação entre os atores sociais, governamentais e não-governamentais, envolvidos na promoção dessas políticas públicas. Após definir seus princípios e dinâmicas norteadoras, a Rede de Atenção de Goiânia tinha como tarefa urgente promover a capacitação dos profissionais para o atendimento especializado de pessoas em situação de violência, seja de ordem física, psicológica ou sexual, a ampliação e implantação de serviços nessa área e a otimização dos recursos humanos e materiais.

E como garantir tais metas no transcurso das rotinas dos serviços de atenção, seja governamentais ou não-governamentais? Como articular serviços de naturezas tão distintas? Como organizar as ações para que elas não se sobrepusessem umas às outras? Como padronizar fluxos e procedimentos no atendimento, para que não se revitimizassem as pessoas envolvidas em situações de violência?

Visando alcançar tais objetivos, dois instrumentos foram construídos pela coordenação da Rede de Atenção de Goiânia: (a) um com caráter organizativo interinstitucional permanente e (b) outro de planejamento integrado das ações desenvolvidas pelos atores da Rede de Atenção de Goiânia.

Foi criado um fórum deliberativo e executivo, que recebeu a denominação Comissão Executiva da Rede, cuja composição é paritária, para garantir a integração permanente dos diferentes atores envolvidos na Rede de Atenção de Goiânia. As diversas instituições que formam essa Rede têm assento permanente na sua Comissão Executiva. A principal missão da Executiva é acompanhar a execução dos planejamentos conjuntos realizados pela Rede, e os seus encontros são ordinários, uma vez por mês.

O outro instrumento construído foi o Planejamento Estratégico Situacional (PES – Rede de Atenção de Goiânia). O primeiro trabalho ocorreu em maio de 2001, em seis etapas distintas. A primeira etapa foi o da apresentação, de forma sistemática, dos atores envolvidos na Rede de Atenção de Goiânia. Cada instituição – governamental ou não-governamental – realizou uma descrição detalhada sobre os seus recursos físicos e humanos, bem como dos serviços oferecidos, e buscou saber o que gostariam de receber das demais instituições que compunham a Rede de Atenção de Goiânia. Esse momento tinha como objetivo o reconhecimento mútuo dos envolvidos na Rede, para que estes compartilhassem suas dificuldades e necessidades.

A segunda etapa deu-se de forma mais operativa, pois teve como finalidade definir os níveis de atenção dos serviços prestados na Rede; já a terceira etapa compreendeu a definição do nível de atenção, seguindo-se a padronização pelos níveis de complexidade adotada na saúde pública – Atenção Básica, Secundária e Terciária; na quarta etapa do PES, apresentaram-se os principais problemas existentes nos serviços; na quinta etapa, procedeu-se à exposição das possíveis propostas de resolução e ao esboço de um fluxo preliminar para os encaminhamentos dos casos que envolviam situações de abuso sexual e estupro; na sexta etapa, definiram-se as operações prioritárias do PES, a saber: a implementação de uma referência e contra-referência resolutiva, um maior investimento na formação dos profissionais e a criação de um serviço de atendimento ao abusador.

A partir do PES, especificamente na operação que definia a implantação de uma referência e contra-referência resolutiva, inicia-se a construção da ficha de notificação (6) dos casos de violência ocorridos em Goiânia. O entendimento das instituições representadas no Planejamento Estratégico era de que, sem um formulário único, em que se notificassem os casos de violência, e sem um banco de dados, que centralizasse as informações desse formulário, era inviável a efetivação de uma referência e contra-referência eficaz.

Como ocorreu nas demais operações e subações, definiu-se no PES um grupo de trabalho que seria responsável pela efetivação da proposta do Formulário Único e da Central de Dados. Esse grupo foi composto por representantes da Unidade de Saúde Mental – “Casa Água Viva/SMS de Goiânia –, do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil CEPAJ/UCG, do Hospital Materno Infantil da Secretaria Estadual da Saúde de Goiás/SES de Goiás, do Centro Integrado Médico e Psicopedagógico (CIMP/SES de Goiás) e do Grupo Transas do Corpo. A coordenação do grupo ficou a cargo da Divisão da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente da SMS de Goiânia.

A proposta de criação de uma ficha de notificação para os casos de violências ocorridos em Goiânia não surgiu de uma deliberação técnica administrativa do nível central da SMS de Goiânia, mas de uma necessidade concreta dos serviços de atenção que integravam a Rede de Atenção de Goiânia. Os profissionais desses serviços acreditavam que a ficha de notificação e a central de dados eram fundamentais para a qualificação dos encaminhamentos e acompanhamentos dos casos de violência entre os serviços de diferentes níveis de atenção.

Como a implantação da Rede de Atenção de Goiânia propiciou um aumento das denúncias e da demanda por atendimentos dos casos de violência no município de Goiânia, sentiu-se a necessidade de organizar essa demanda de forma sistemática, conforme relata Norma Cardoso:


"A Rede de Atenção passa a ter um fluxo de funcionamento, e uma outra demanda surge, a do registro do atendimento dos casos de violência que passam pelas unidades de atendimento que compõem a Rede. [...] Quando na Rede entra em pauta a discussão sobre o registro de dados do atendimento e a criação de um banco de dados, se coloca, então, a discussão da ficha de notificação".


Ao propor o registro dos casos de violência, a preocupação central dos serviços era a de não revitimizar as pessoas envolvidas. A notificação deveria viabilizar um encaminhamento adequado, para evitar que os usuários perambulassem por muitos serviços sem receber a atenção prioritária para o seu caso. Com isso, evitar-se-iam constrangimentos e novos agravos à saúde, caso ocorresse demora na realização de procedimentos como o da contracepção de emergência e da profilaxia de DST/AIDS.

A proposta da central de dados tinha como principal objetivo o monitoramento dos casos, diante das preocupações com a estruturação de um registro estatístico mais fidedigno dos casos de violência. Porém não era essa a principal demanda dos serviços. O mais importante era que a central de dados viabilizasse um monitoramento eficiente dos casos atendidos dentro da própria Rede de Atenção de Goiânia, para que eles não se perdessem, propondo-se, assim, a criação da ficha de notificação e da central de dados dos casos de violência, para qualificação da referência e contra-referência dos casos atendidos nos serviços prestados pelas entidades que compõem a Rede de Atenção de Goiânia.


O Grupo de Trabalho Referência-Contra-Referência: subação Formulário Único (7) e criação da Central de Dados

A primeira tarefa do Grupo de Trabalho responsável pela elaboração da proposta do Formulário Único e da Central de Dados foi conhecer todos os tipos de registros existentes nos serviços da Rede de Atenção de Goiânia. Logo de início, percebeu-se a diversidade de informações priorizadas em cada registro, diante das características distintas dos atendimentos, o que se constituiu um dos maiores obstáculos enfrentados pelo grupo de trabalho, na tarefa de propor uma ficha de notificação única e padronizada. A delimitação das informações priorizadas na notificação só foi concluída depois de uma longa negociação entre os serviços da Rede de Atenção de Goiânia. Um outro desafio foi conciliar em um mesmo formulário informações que contemplassem os segmentos que atendiam a crianças e adolescentes e os que atendiam a mulheres.

Rurany Silva considera:


"A construção de consensos sobre o fenômeno da violência, por meio de um processo de muito diálogo e reflexão entre os dois Fóruns, foi muito importante. Assim, na construção da Rede de Atenção de Goiânia foi contemplado a multiplicidade e a especificidade de cada grupo populacional, seja ele de crianças, adolescentes ou de mulheres em viviam situações de violência. E isso já aparece de forma concreta na primeira proposta de ficha de notificação construída pelo grupo de trabalho da referência e contra-referência. Estabelecer consensos sobre a relação de gênero como um elemento estruturante da Rede foi uma difícil, mas crucial tarefa do movimento de mulheres".


Depois de selecionadas as informações que integrariam a ficha de notificação, propôs-se um modelo-piloto para ser avaliado pela Comissão Executiva da Rede, cuja base, para a sua construção, foi a ficha de Atendimento Multidisciplinar à Pessoa em Situação de Violência Sexual (8). Além disso, foram fundamentais a contribuição do modelo Ficha de Acolhimento, da Unidade de Saúde Mental Casa Água Viva (SMS de Goiânia), e as discussões do Grupo de Trabalho responsável pela formação dos profissionais da Rede. Sobre essas contribuições, a representante do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil (CEPAJ/PROEX/IDF/UCG), ressalta:


"Este modelo foi modificado, ampliado a partir das experiências das entidades que tinham seus próprios registros. O Grupo de Trabalho que era responsável pelo planejamento e execução das formações da Rede de Atenção de Goiânia também contribuiu com a elaboração da ficha ao indicar aspectos importantes que deveriam comparecer nesse novo registro".


No entendimento dessa representante, o processo de construção da ficha de notificação e da central de dados contribuiu com o movimento de efetivação e fortalecimento das ações da Rede de Atenção de Goiânia. No entanto, trata-se de um processo que não seguiu um movimento linear de avanços, pois houve também alguns retrocessos.


"Foi difícil a construção de um instrumento único, que satisfizesse as necessidades de cada instituição. A utilização de um instrumento único também implicava mudanças àquelas instituições que já tinham algum tipo de registro ou que não faziam nenhum registro [...]. De forma lenta, este processo contribuiu para avançar na constituição da própria Rede de Atenção, ajudando na articulação de seus atores, pois estes tinham que conhecer e utilizar um instrumento único".


A conclusão da proposta da ficha de notificação do Grupo de Trabalho ocorreu no final do segundo semestre de 2002, sendo o modelo-piloto entregue à Comissão Executiva da Rede de Atenção de Goiânia, que o aprovou, e deliberou, por conseguinte, que a implantação da ficha e a posterior criação da central de dados seriam de responsabilidade técnica da SMS de Goiânia. Com isso, foi considerado extinto o Grupo de Trabalho constituído para aquela finalidade.


Implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência na Rede de Saúde de Goiânia


De acordo com a técnica responsável do NPVPS da SMS de Goiânia, o processo de implantação da ficha de notificação dos casos de violência iniciou-se com o trabalho de sensibilização dos gestores e técnicos dos Distritos Sanitários (DS), que, por sua vez, realizaram o mesmo trabalho nas unidades de saúde. Após, realizou-se uma ação mais operativa, de orientação de preenchimento e encaminhamento adequado dos casos de violências identificados na rede de saúde.

A ficha de notificação foi implantada em toda a rede de saúde de Goiânia no ano de 2004. As Unidades de Urgência e Emergência receberam uma atenção especial, pois essas identificavam, historicamente, um número maior de ocorrência de casos de violência. Estabeleceu-se um acompanhamento permanente das equipes dessas unidades, considerando-se que era fundamental atualizar as informações e acompanhar os encaminhamentos realizados pelos profissionais. Para a técnica do NPVPS da SMS de Goiânia, essa priorização foi estratégica, pois com o tempo as unidades de urgência e emergência tornaram-se uma referência para as outras unidades de menor porte e complexidade.

Todo o processo de sensibilização e adesão das unidades de saúde à Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência (9) iniciou-se no segundo semestre de 2003. A ficha de notificação, nesse período de implantação, tinha a função de agilizar a identificação dos casos de violência e qualificar os encaminhamentos. Sobre tal característica da ficha de notificação de Goiânia, Lucimarta Cunha afirma:


"Na época a nossa preocupação era ter um instrumento que orientasse os profissionais de saúde em seu trabalhar. O usuário, que sofreu alguma forma de violência, não deveria sair das unidades sem um atendimento adequado em relação à sua saúde. Na verdade tinha embaixo da ficha o protocolo de DST, que dava orientação para os profissionais sobre os exames que precisavam ser feitos, do tempo necessário dos exames. Então, para nós naquele momento o importante, a preocupação maior, era com o atendimento".


Para formalizar a implantação da referida ficha e ampliá-la para os serviços da rede conveniada e privada, o SMS de Goiânia expediu a Portaria n. 152, em 5 de maio de 2004, cujo artigo primeiro é como segue:


"Todos os estabelecimentos de saúde públicos e privados no Município de Goiânia são obrigados a preencher e encaminhar à Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia a “Ficha de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência contra a Mulher à Criança e/ou Adolescente”. (GOIÂNIA, 2004b)".


Na visão da técnica do NPVPS, a referida Portaria foi fundamental para a implantação da ficha, uma vez que informava a todos os profissionais de saúde da Rede que a notificação não era apenas uma deliberação de uma área técnica específica, mas uma diretriz da gestão da Secretaria de Saúde. Desse modo, toda a rede do SUS – rede pública, privada e conveniada da saúde – obrigatoriamente deveria efetuar a notificação dos casos de violência, os quais não se restringiam a crianças e adolescentes, mas também a mulheres.


Efetivação do Sistema de Informação dos Casos de Violências: Banco de Dados Municipal


Com a implantação e regulamentação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência, tornou-se urgente a elaboração de um sistema de informação que registrasse os dados coletados na notificação. De acordo com Rafael Dídimo, técnico da Central de Informática da SMS de Goiânia, o sistema foi desenvolvido na linguagem Delphi 7.0 e o banco de dados Interbase. Trata-se de sistema composto por cinco tabelas de dados, os quais permitem a entrada dos seguintes tipos de informação: 1) fonte notificadora (unidade de saúde, DS, profissional responsável pela notificação); 2) características das vítimas de violência; 3) tipo de violência; 4) características do provável autor da agressão e 6) encaminhamentos e condutas.

Para a emissão dos relatórios estatísticos, desenvolveu-se uma rotina de exportação de dados, mediante a transferência dos dados do banco Interbase para o formato DBF, utilizado para tabulação de dados pelo TABWIN. O setor de informática da SMS de Goiânia desenvolveu ainda arquivos de definições e conversões (DEFs e CNVs) para o TABWIN. Com essa medida, facilitava-se a análise dos dados digitados.

O Sistema de Informação implementado na SMS de Goiânia permitiu um melhor monitoramento e compreensão dos dados identificados na Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência. A primeira apresentação oficial dos relatórios do banco de dados dos casos notificados ocorreu no dia 12 de agosto de 2004, no seminário realizado pelo Hospital de Urgências de Goiânia, SES de Goiás, em cujo evento contou-se com a presença de um representante do MS, o qual solicitou o encaminhamento dos dados e das informações sobre a ficha de notificação de Goiânia à área técnica do Ministério. Dessa forma, Goiânia passou, a partir de então, a compor a equipe que construiria a ficha nacional de notificação dos casos de violência.


Participação de Goiânia na construção da Notificação Nacional dos Casos de Violência


O movimento pela construção de políticas públicas, em Goiânia, para atuação na prevenção das violências e na atenção às mulheres, crianças e adolescentes que viviam situações de violência, foi uma expressão local de uma luta comum tanto no plano nacional como no internacional. A efetivação da Rede de Atenção de Goiânia, com a posterior implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência, estava em consonância com as recomendações da Conferência Internacional de População, realizada em Cairo, no ano de 1994, bem como da Conferência Internacional da Mulher, evento ocorrido em Beijing, no ano de 1995, e ainda da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, transcorrida em Pequim, na data de 1995, e da Convenção de Belém do Pará, denominada Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, realizada em 1995.

Além disso, contemplava as resoluções do Congresso Mundial contra Exploração Sexual Comercial de Crianças e de Adolescentes, transcorrido em Estocolmo, no ano de 1996, e o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, definido pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA/Brasil, 2000). Esse movimento encontrava também expressões em espaços governamentais ligados à área da Saúde Pública. A partir de 2000, ganha força no MS a proposta de implantação de uma política nacional de redução de morbimortalidades por causas externas – acidentes e violências.

No sentido de efetivar essa política, o MS publica em 2001 a Portarias de n° 737/GM (Brasil, 2001a), que instituiu a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, e a Portaria de nº 1.968/GM (BRASIL, 2001b), que regulamentava a obrigatoriedade da Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes no SUS. Para implementar o propósito e as diretrizes definidas dessa política nacional, o MS instituiu, no âmbito do SUS, a Rede Nacional de Núcleos de Prevenção das Violências e Promoção de Saúde, que foi regulamentada pela Portaria nº 936, de 2004.

A partir de demandas sociais, particularmente do movimento feminista, em 2003 o Presidente da República promulga a Lei de n° 10.778, de 24 de novembro (BRASIL, 2003a), que instituía a notificação compulsória de violência contra a mulher. Essa lei foi regulamentada no MS pela Portaria de nº 2.406/GM, de 5 de novembro de 2004 (BRASIL, 2004). Com as duas regulamentações, tornou-se imprescindível a construção de um instrumento de coleta padronizado para o registro dos dados das notificações de violência contra crianças, adolescentes e mulheres.

A Portaria de nº 2.406 já incluía em seu anexo uma proposta de instrumento de notificação a ser utilizado pelos profissionais de saúde. Esse instrumento foi elaborado pela equipe técnica das Coordenações de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis e de Análises e Informações Epidemiológicas do Departamento de Análises de Situação de Saúde (DASIS) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do MS. Apesar de sistematizada, a notificação proposta pela portaria ainda não havia passado por uma testagem. No ano de 2005, o MS selecionou serviços que tinham experiência acumulada com notificações de casos de violência, para testar a ficha nacional.

De acordo com Otaliba Morais, diretor do DASIS/SVS/MS, havia duas experiências em âmbito nacional que são exemplos de sistemas de notificação de violência: a de Curitiba e a de Goiânia. A experiência de Curitiba, que vem de um longo tempo, tem uma inserção estruturada nos serviços de saúde. O que diferencia a experiência de Curitiba é o consolidado trabalho de vigilância em saúde, com um banco bem estruturado, cujos dados coletados pela notificação passam por uma constante e sistemática análise. A ficha de Curitiba é um instrumento utilizado nas escolas, no SOS Crianças e demais serviços de assistência social. As 109 redes locais, coordenadas por regionais intersetoriais, viabilizam uma melhor organização dos encaminhamentos e conseqüentemente reduzem a subnotificação dos casos de violência contra criança e adolescente.

O município de Goiânia, desde 2004, já realizava a notificação de violências contra crianças, adolescentes e mulheres em toda a sua rede de saúde (GOIÂNIA, 2004b). Apesar de a experiência de Goiânia ser mais recente, comparada com a de Curitiba, ela apresentava uma característica que era inédita no país. A ficha de notificação incluía a notificação de violências contra a mulher em todas as unidades de saúde de Goiânia, mesmo antes da regulamentação do MS. Em maio de 2005, a SMS de Goiânia é selecionada para participar do pré-teste da ficha de notificação nacional proposta pelo MS. Participaram também dessa testagem as Secretarias Municipais de Florianópolis e de Ribeirão Preto.

Em 9 de junho de 2005 realizou-se a oficina de avaliação do pré-teste da ficha nacional, processo esse coordenado pela Área Técnica de Vigilância, Prevenção e Controle de Violências e Acidentes/Coordenação Geral de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis (CGDANT do DASIS/SVS/MS). Essa oficina de avaliação contou ainda com a participação da Área Técnica de Saúde da Mulher/Departamento de Ação Programática Estratégica da Secretaria de Atenção em Saúde/MS, de representantes da Secretaria Estadual de São Paulo e das Secretarias Municipais de Campinas e Belo Horizonte, além de representante da ONG IPAS Brasil, do Rio de Janeiro.

Exclusões, inclusões e modificações de alguns campos foram propostas pelos participantes da oficina de avaliação do pré-teste. A representante do NPVPS da SMS de Goiânia, sugeriu a inclusão de alguns dados que já eram coletados na ficha de notificação de Goiânia. A coordenadora Marta Silva, Área Técnica de Vigilância, Prevenção e Controle de Violências e Acidentes/VPCVA do MS, afirma que a participação de Goiânia na oficina foi muito importante, pois apresentou sugestões que



"(...) foram fundamentais para a modificação na ficha e contribuíram para a versão final da ficha nacional. Um dos pontos que vale destacar foi a necessidade de que a ficha incorporasse também as notificações de violências contra pessoas do sexo masculino e não somente mulheres, o que já vinha ocorrendo em Goiânia em relação a crianças e adolescentes tanto do sexo feminino como masculino".


Entre maio e novembro de 2005 muitos ajustes forma feitos na ficha de nacional. O seu layout foi alterado para que seguisse a padronização do SINAN. Essa padronização permitiria no futuro um georeferenciamento das informações e uma posterior inclusão dos dados da ficha de notificação de violência no Sistema de Informação do SINAN. Foi acrescentado na ficha um campo que informava se a violência notificada era uma suspeita ou se já estava confirmada. Marta Silva ressalta que após a avaliação do pré-teste houve um processo de discussão e pactuação com várias áreas internas do MS. Consensuou-se que a ficha atenderia às especificidades relacionadas a cada ciclo de vida, independente do sexo e considerando as várias tipologias e naturezas das violências, sejam elas interpessoais ou autoprovocadas.

A ficha nacional atenderia ainda às demandas existentes, inclusive no que diz respeito à obrigatoriedade de notificação de violências contra crianças, adolescentes, mulher e idoso. Segundo Marta Silva, com essa proposta única, o MS tem como meta a substituição dos anexos das Portarias nº 1.968/2001 e 2.406/2004, que obrigam a notificação de violências contra mulher, adolescente e mulheres respectivamente.

Dessa forma, a ficha assumiu a sua versão final, sendo denominada Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. Ela foi implantada no país inicialmente em 39 secretarias de saúde municipais localizadas nas 27 unidades federativas, cuja coleta iniciou-se em agosto de 2006. Para viabilizar essa implantação houve um incentivo financeiro do MS repassado pela Portaria nº 1.356/2006.
Em agosto de 2006, a SMS de Goiânia substitui a sua ficha de notificação local e passou a utilizar a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências, aprovada pelo MS.

Além da participação no pré-teste da ficha de nacional, a SMS de Goiânia participou também da implantação do projeto Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela – VIVA – proposto pela CGDANT/DASIS/SVS/MS. Esse projeto, apresentado em março de 2006 para as SES e SMS, possui dois componentes: vigilância contínua de violência doméstica, sexual e/ou outras violências; e a vigilância de violências e acidentes por meio de pesquisa de demanda e inquérito realizada em serviços de urgência e emergência. A ficha nacional apresentada nessa ocasião seria o instrumento de notificação do componente da vigilância contínua.

Nesse mesmo mês, a SMS de Goiânia aderiu ao projeto VIVA e, em parceria com o Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás/UFG, deu início à pesquisa sobre as ocorrências de acidentes e violências no Hospital de Urgências de Goiânia/HUGO da SES de Goiás. A coleta de dados foi feita por amostragem e ocorreu durante todo o mês de setembro. Trata-se de pesquisa que adotou as fichas preconizadas pelo MS, cujos resultados foram enviados ao Ministério da Saúde em março de 2007.



Importância da experiência goianiense na efetivação da notificação nacional dos casos de violência


A experiência de implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência de Goiânia exerceu um papel importante na formação de técnicos e gestores que atuaram diretamente na implementação da notificação nacional. O atual diretor do DASIS/SVS/MS destaca que sua participação na implantação da notificação de casos de violência em Goiânia foi como gestor municipal. De acordo com ele, a experiência de Goiânia imprimiu-lhe uma perspectiva positiva em relação à efetivação da notificação nacional. Ele entende que a experiência de Goiânia gerou um cenário de facilidades na operacionalização da implantação da ficha de notificação nacional:

Primeiro, porque foi uma experiência formadora, auxiliou-me a compreender que a notificação é um importante instrumento de intervenção e vigilância. Segundo, por demonstrar que é viável no âmbito da gestão colocar a questão da violência como uma prioridade e a partir daí fazer com que isso seja implementado e operacionalizado na prática, com a notificação, com a montagem da rede, com a articulação intersetorial. Acho que isto foi a grande contribuição de Goiânia.

A implantação da vigilância na área da violência já era preconizada desde 2001, com a aprovação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Era também uma exigência legal definida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), pelo Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003a) e pela Lei de n° 10.778, de 24 de novembro de 2003 (BRASIL, 2003b), que instituía a notificação compulsória de violência contra a mulher. Apesar de todas essas bases legais, o processo de implantação da notificação de casos de violências até 2004 ainda não estava em curso. Para Otaliba Morais, a experiência de Goiânia deu-lhe


"(...) mais condições de priorizar e, de uma forma mais rápida, implementar e buscar outras parcerias no âmbito do Ministério da Saúde, no âmbito de outros órgãos governamentais como a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, e a partir daí iniciar o processo de implantação da ficha de notificação no país".


A coordenadora da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes VPVA/MS destaca que a experiência de Goiânia teve muita influência no trabalho que desempenhou junto ao MS. Em Goiânia ela participou do processo de implantação da anticoncepção de emergência (GOIÂNIA, 1996a) e do atendimento especializado às crianças, adolescentes e mulheres vítimas de violência sexual e doméstica (GOIÂNIA, 1996b). No período de 2003 a 2004, participou também do processo de implantação da ficha de notificação dos casos de violência (GOIÂNIA, 2004b) e da criação do NPVPS (GOIÂNIA, 2004c) da SMS de Goiânia. No MS, coordenou o processo de construção, pactuação e implantação da Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela (VIVA) e da ficha nacional de notificação de casos de violência no Ministério da Saúde. Sobre essa influência ela ressalta:


"Apesar de ser sensível e motivada a trabalhar questões relacionadas às violências, estas experiências possibilitaram-me viver vários desafios, pensá-los e propor medidas de intervenção relacionadas às violências, como a anticoncepção de emergência e o aborto legal, a necessidade de implementar a rede de assistência às vítimas de violência e a notificação destes agravos, a formação de recursos humanos, e a estruturação de rede de proteção social. A partir de minhas vivências e experiências em Goiânia, acertos e desacertos, é que fui incumbida de conduzir este processo em nível nacional exercendo a função de coordenadora da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde".



O trabalho desenvolvido pelo DASIS/SVS/MS teve uma ampla articulação intra e intersetorial. A implantação da notificação nacional, como ocorreu em Goiânia, foi uma construção coletiva. O processo de discussão, análise, avaliação e pactuação da ficha de notificação compulsória de violência contra a mulher (e outras violências interpessoais) contou com uma ampla participação de técnicos e gestores de diferentes áreas do Ministério da Saúde (Áreas Técnicas da Saúde da Mulher, da Criança e Adolescente, do Idoso, do Trabalhador, do Portador de Deficiência, Mental, Bucal e dos programas de DST/AIDS). A articulação intersetorial envolveu ainda a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/Presidência da República. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, também vinculada à Presidência da República, foi outra instância governamental que contribuiu com esse processo. Para Marta Silva,


"(...) [esse processo] foi um grande desafio, pois precisávamos superar a fragmentação e superposições entre várias áreas técnicas e chegar a um produto final que atendesse às especificidades das áreas, às demandas legais e às necessidades das pessoas vítimas de violência. Tínhamos que vencer a burocracia, as vaidades e guetos, e construir e pactuar uma ficha que atendesse às necessidades dos cidadãos, das pessoas. Este era o sentido. Construção coletiva é um processo demorado, permeado de conflitos, mas muito rico. No final, todos se reconhecem no produto. A ficha é reconhecida por todos e todos são responsáveis por ela".


Para a coordenadora da área técnica da VPVA/DASIS/SVS/MS, o processo de efetivação da ficha de notificação não foi fácil nem rápido. Ele demandou várias reuniões e oficinas. A construção democrática da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências exigiu por parte dos técnicos envolvidos a capacidade de “saber ouvir e balizar as diferenças entre vários pensamentos e conceitos envolvidos”. Em 27 de novembro de 2006, a Área Técnica da VPVA/ DASIS/SVS/MS apresenta a primeira análise preliminar dos registros da Ficha de Notificação/Investigação das Violências Doméstica, Sexual e Outras Violências. Dos 39 entes federados, 33 SMS, 5 SES e DF, que aderiam à proposta da vigilância contínua em serviços sentinelas, 29 conseguiram enviar os seus relatórios ao MS, até 24 de novembro de 2006. De agosto a setembro, 931 notificações foram registradas nos sistema de vigilância contínua do MS.

A ficha de notificação fornece, uma enorme riqueza de informações entre elas, dados sobre a incidência de casos de violência, de acordo com a faixa etária. Além desses dados, o levantamento da ficha de notificação registra os casos de violência, categorizando-os conforme o tipo de violência observado. A tabulação de dados realizados pela Notificação Nacional confirma a realidade observada em Goiânia, pelos conselhos tutelares e pelas unidades de saúde de urgência: a violência física ainda é a mais freqüente.

O resultado da pesquisa por amostragem realizada nas unidades de urgência e emergência foi apresentado em 11 de maio de 2007. Até essa data, 47.263 fichas de notificação foram registradas no sistema de vigilância de acidentes e violências do MS. Nas unidades de emergência pesquisaram-se os acidentes e os casos de violência interpessoais, e os dados indicam que os acidentes superam as violências interpessoais na faixa etária que vai de 0 a 9 anos. A partir dos dez anos até os 39 anos, predominam as violências interpessoais. Na faixa etária que vai dos 40 aos 60 anos, os acidentes voltam a ter maior freqüência nos registros das notificações.

Com relação ao tipo de ocorrência e o sexo da vítima, essa pesquisa identificou uma maior incidência no sexo masculino, tanto nos acidentes como nas violências. Dos 37.692 casos registrados na Ficha de Notificação de Acidentes e Violências em Unidades de Urgência e Emergência, até setembro de 2006, o sexo masculino representou 66% das vítimas de acidentes e violências e o sexo feminino 34%. Mas o mesmo resultado não aparece nos dados Ficha de Notificação/Investigação das Violências Doméstica, Sexual e Outras Violências – Vigilância Contínua. Dos 587 casos registrados entre agosto e setembro de 2006, o sexo feminino representou 64% das vítimas de violência e o sexo masculino 36%. Uma análise qualitativa dos dados apresentados nas duas fontes de registros poderá melhor explicitar como a violência e os acidentes se expressam entre os diferentes sexos.



Avanços e Desafios em Goiânia


A implementação da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências no Sistema Único de Saúde é uma importante conquista. Como todo instrumento de vigilância em saúde, ele deverá passar por adaptações e ajustes. Com certeza um bom tempo transcorrerá até que ele realmente seja incorporado na cultura institucional e na rotina dos serviços de saúde do país. Predomina ainda uma grande resistência por parte dos profissionais em relação à notificação compulsória. Alguns profissionais temem retaliações por parte dos agressores e seus familiares, ou não querem se comprometer com possíveis tramitações judiciais. Outros se preocupam com o rompimento do vínculo terapêutico ou com a exposição que as pessoas envolvidas possam sofrer. Mas a própria obrigatoriedade da notificação induz que essas discussões apareçam e se aprofundem, evitando assim a tradicional posição de naturalização e desresponsabilização com os casos de violência.

Em Goiânia, apesar de ter iniciado o processo de notificação em 2004, ainda existe a subnotificação dos casos de violência. Acredita-se que, com um trabalho permanente de acompanhamento e educação permanente das equipes, este grave problema possa ser minimizado. A notificação de violências em Goiânia está estendida a toda a rede de saúde, incluindo a atenção básica e o Programa de Saúde da Família. Assinale-se que, em 2006, as Unidades Regionais da Secretaria Municipal da Educação de Goiânia passaram a utilizar a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. As primeiras notificações foram entregues ao NPVPS em 12 de dezembro de 2006. As notificações realizadas na rede de educação municipal seguem o mesmo fluxo das notificações da saúde. Até o final do primeiro semestre de 2007, os Programas Sentinelas da área da assistência social estarão utilizando o mesmo instrumento.


A intenção, ao integrar a área da assistência social e da educação no processo de notificação, é ampliar o trabalho de vigilância, permitindo um registro mais fidedigno dos casos de violência ocorridos em Goiânia. Essa extensão da notificação a essas áreas visa também à identificação, em fases mais precoces, dos casos de violência. Essa extensão tem como finalidade última qualificar assistência as pessoas que vivem situações de violências.

Salienta-se que, no caso de violências contra crianças e adolescentes, é sempre enviada uma cópia da ficha de notificação ao conselho tutelar. No caso das violências contra o idoso, os DS enviam um relatório para o Ministério Público de Goiás. O NPVPS/SMS de Goiânia, em conjunto com a Rede de Atenção de Goiânia, tem mantido uma articulação permanente junto ao Ministério Público, ao Fórum de Justiça de Goiás e à Secretaria Estadual de Segurança Pública de Goiás. Essas articulações têm o objetivo de se garantir a atenção integral e humanizada, os direitos e a proteção social das pessoas que sofrem violências. Uma conquista recente é a implantação da sala de inquirição especial para os julgamentos que envolvem violências contra crianças, mulheres e crianças, que aconteceu em 25 de janeiro de 2007.


Notas

  1. Todas as vezes que fizermos referência à Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia, utilizaremos apenas a expressão Rede de Atenção de Goiânia.
  2. A capacitação foi dirigida aos profissionais da área de saúde, de educação e de assistência social do município de Goiânia. Os encontros ocorreram em cinco regiões diferentes da cidade, e foram planejados e organizados pelo que se denomina Grupo de Trabalho, que é responsável pela educação permanente da Rede de Atenção de Goiânia. A execução e o financiamento ficaram a cargo do Núcleo de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde (NPVPS) da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia e do projeto “Ações de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil em Goiânia e região metropolitana” (UCG/SEDH.PR).
  3. A designação Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências foi criada pelo Ministério da Saúde, em 2006, a partir de pactuações internas e externas, e constitui um dos instrumentos de notificação da Vigilância de Violências (VIVA).
  4. Para maior aprofundamento sobre o histórico da fundação da Rede de Atenção de Goiânia, ver o texto de Luiz do Nascimento Carvalho, Iraídes Campos da Luz e Noemi Assim, que também compõe esta obra.
  5. O Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infanto-Juvenil e o Fórum Goiano de Mulheres são os dois segmentos sociais que coordenam a Rede de Atenção de Goiânia.
  6. No relatório do Planejamento Estratégico Situacional (PES) de 2001, a idéia de uma ficha de notificação dos casos de violência não estava sedimentada. Essa é a razão por que, na época, os participantes propuseram uma ficha denominada Formulário Único de Acolhimento dos Casos de Violência. Todos os registros desse formulário deveriam ser condensados em uma central de dados informatizada.
  7. No texto, esse termo foi substituído por fichas de notificação, pois, na compreensão da autora, ele contempla melhor o sentido do que foi proposto pelos participantes do PES de 2001.
  8. Essa ficha é citada no depoimento de Norma Cardoso, mas não foi encontrada nenhum exemplar dela, e nem registro que informasse a sua origem.
  9. Em todos os documentos impressos da SMS de Goiânia, a notificação de casos de violência é denominada Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência. Vale ressaltar que na portaria SMS nº 152, de 5 de maio de 2004, que regulamenta a notificação em Goiânia, não aparece o termo “multidisciplinar”.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Proposta da Campanha Nacional Pelo Fim da Exploração, Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e do Turismo. Brasília, DF, 1995.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1990.

______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Portaria MS/GM n.º 737 de 16 de maio de 2001. Diário Oficial da União, n. 96, Seção 1E de 18 de maio de 2001. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. (Série E. Legislação de Saúde, n.8).

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.968/GM, que regulamenta a Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2001b.

______. Lei nº 10.741, de 10 de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: Congresso Nacional, 2003a.

______. Lei de n° 10.778, de 24 de novembro de 2003, que institui a notificação compulsória de violência contra a mulher e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília: Congresso Nacional, 2003b.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 936/GM, de 19 de maio de 2004, que institui a Rede Nacional de Núcleos de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.406/GM, de 5 de novembro de 2004, que institui o Serviço de Notificação Compulsória de Violência contra a Mulher, e aprova instrumento e fluxo para notificação. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

______. Ministério da Saúde. Secretaria da Atenção à Saúde. Violência faz mal à saúde / [Cláudia Araújo de Lima et al. (Coord.) ]. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 687 MS/GM de 30 de junho de 2006, que aprova a Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

GOIÂNIA. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Núcleo de Assistência à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Memorando nº 75 de 26 de setembro de 1996, que comunica a implantação da Anticoncepção de Emergência e dá outras providências. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 1996a.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Núcleo de Assistência Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Memorando nº 791 de 3 de dezembro de 1996, que comunica a implantação do serviço de acompanhamento psicológico a mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e abuso sexual. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 1996b.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Divisão de Atenção à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Projeto da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2000.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Divisão de Atenção à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Apresentação do Fluxo da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescente em Situação de Violência de Goiânia. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2004a.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Portaria nº 152 de 5 de maio de 2004, que institui a Ficha de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência contra a Mulher à Criança e/ou Adolescente. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2004b.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Portaria n° 698 de 24 de novembro de 2004, que institui o Núcleo de Prevenção das Violências e Causas Externas e Promoção da Saúde. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2004c.


Capítulo publicado no livro (Re) Descobrindo faces da violência sexual contra crianças e adolescentes / Org. [por] Maria Luiza Moura Oliveira e Sônia M. Gomes e Sousa - Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Goiânia: Cânone Editorial, 2007.

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